terça-feira, 21 de junho de 2011

ARTIGO - SEMANA PEDAGÓGICA SEED/CGE - 2008

OS DESAFIOS EDUCACIONAIS CONTEMPORÂNEOS  E OS CONTEÚDOS ESCOLARES: REFLEXOS NA ORGANIZAÇÃO DA PROPOSTA PEDAGÓGICA CURRICULAR E A ESPECIFICIDADE DA ESCOLA PÚBLICA [1]


Algumas análises das proposições das escolas nos planos de ação, elaborados por estas no início de 2008, nos remetem a traçar um rápido diagnóstico das possíveis incompreensões históricas, as quais envolvem a escola no âmbito de sua função social e neste sentido do próprio currículo. 
É preciso destacar que a forma como a escola concebe sua função social, a organização curricular, a gestão escolar e seu próprio Projeto Político-pedagógico pode,  em alguma medida, estar circunstanciado pelo conjunto das reformas educacionais situadas no contexto político, econômico e social. Em especial podemos, para efeito desta análise, contextualizar os condicionantes sobre a escola a partir do conjunto das políticas educacionais situadas a partir da década de 90. Embora os impactos destas reformas tenham sido  significativos sobre as dimensões destacadas acima (concepção de gestão, de currículo e, portanto, da função social da escola) este texto buscará analisar os reflexos sociais, políticos e econômicos sobre as propostas curriculares, a concepção de conhecimento e a especificidade da escola pública.  
            Antes desta análise, contudo, é possível situar o currículo como um produto histórico, resultado de um conjunto de forças sociais, políticas e pedagógicas que expressam e organizam os saberes que circunstanciam as práticas escolares na formação dos sujeitos que, por sua vez, são também históricos e sociais.  Nesta perspectiva, o currículo deve  oferecer, não somente vias para compreender  tanto os saberes nele inseridos, como também, os movimentos contraditórios pelos quais a sociedade vem enfrentando e de que forma os sujeitos se inserem neles.   O currículo da escola é a seleção intencional de uma  porção de cultura. Cultura por sua vez, refere-se a toda a produção humana que se constrói a partir  das interrelações do ser humano com a natureza, com o outro e consigo mesmo. Esta ação essencialmente humana e intencional é realizada a partir do trabalho, através do qual o homem  se humaniza e humaniza a própria a natureza.   Neste sentido, à escola  cabe erigir  seu papel fundamental na transmissão, apropriação e socialização dos saberes culturais, numa base teleológica (intencional) que pressuponha uma ação intencional e  transformadora da realidade concreta.
            Quando currículo expressa a centralidade das políticas educacionais, ele está   também  expressando as  intenções sociais, políticas, ideológicas e até econômicas que se manifestam sobre a escola e sobre as aspirações que se tem sobre ela. Assim, currículo acaba se manifestando nas tensões e  contradições  entre o caminho que se almeja percorrer, a intenção deste caminho e o ponto de chegada dele.
            Ao se caracterizar neste projeto de escola e de sociedade, o currículo se revela,  antes de tudo,  no Projeto Político-Pedagógico da escola, o qual  envolve todas as ações, aspirações e concepções sobre o ato educativo.
Em síntese, o currículo é a expressão das  concepções (de homem, de mundo, de  ensino e aprendizagem, de método e de educação), das aspirações sobre a escola e seu papel social, das práticas pedagógicas e das relações nela vividas. É, como consequência disto, a seleção intencional de conteúdos, saberes e conhecimentos, os quais devem  ser democratizados para toda a população, uma vez que são requisitos mínimos para a participação consciente  em uma sociedade cada vez mais excludente, seletiva e contraditória.
É, portanto,  na tensão sobre a explicitação do projeto de  escola pública e de sua especificidade, que se faz necessária uma análise, ainda que breve, dos reflexos da reestruturação política e econômica sobre a organização curricular das escolas e o impacto destas na forma como a escola historicamente tem concebido sua função social.
Muitos autores (KUENZER, 1997, HARVEY, 2004, ANDERSON, 1997) sinalizam para as políticas educacionais da década de 90 como  o resultado de um contraditório movimento pautado no fortalecimento da base empresarial, no progresso técnico, na sustentabilidade social, na abertura à economia internacional, na competitividade, na desregulamentação econômica,  nos ganhos de produtividade, no crescimento econômico e na elevação da expectativa de vida da população. De forma mais significativa é possível pontuar que este movimento indica a necessidade de reorganização do próprio capitalismo sobre as bases da desregulamentação financeira  (minimização do papel do Estado), bem como da globalização econômica.
Alguns documentos oficiais divulgados no contexto destas reformas  (CEPAL, PCNS, UNESCO) apontam, claramente, em  direção ao desenvolvimento de recursos humanos como sendo a base para  a transformação produtiva com equidade;  uma espécie de retomada da teoria do Capital Humano da década de 70.
Para isso, propõe um pacote de medidas que reestruture a educação e possibilite a capacitação e a incorporação do progresso técnico-científico e o acesso ao conhecimento com o objetivo explícito de adequar a educação às novas necessidades e especificidades do mercado, tendo em vista a reestruturação política e econômica.
Buscando sempre persuadir sobre a necessidade de formação humana na retomada desse desenvolvimento, estes documentos colocam a educação como a panacéia de resolução dos  problemas sociais e econômicos.
 De uma certa forma estas demandas foram imputadas à escola em duas dimensões complementares: de um lado a reestruturação produtiva[2] aliada ao modelo de desenvolvimentos econômico, e de outro os reflexos desta no acirramento das contradições sociais, políticas, culturais e ambientais. Deste modo, na busca de romper modelos padronizados e rígidos da modernidade, em nome de superar a fragmentação do conhecimento e as verdades absolutas, transfere à escola a responsabilidade de resolver problemas de qualquer natureza, necessitando para isso de novas abordagens curriculares inspiradas nesse novo modelo produtivo. Surge, portanto,  a pedagogia de projetos, a inter, trans, poli, multidisciplinaridade e transversalidade, expressas  na relativização dos conteúdos que acabam se configurando  na  idéia do “aprender a aprender”[3], que sustenta os PCNs da década de 90.
Portanto, as novas bases produtivas, firmadas na mundialização do capital, trazem para a educação uma nova demanda colocada sobre velhos interesses: articular a escola ao mercado globalizado. Quando assim faz, retira da escola sua função social que é o compromisso com o conteúdo escolar e com o acesso ao conhecimento sistematizado. No lugar, coloca a idéia do desenvolvimento de habilidades cognitivas como premissa para desenvolver “potencialidades individuais”, retirando a condição de sujeito social e, ‘culpabilizando’ estes mesmos sujeitos, agora singulares e responsáveis em sua particularidade pela inserção, seja ela de qualquer ordem.
Confere à escola, sem uma linearidade racional, a capacidade de articular conhecimentos ao e do mercado de trabalho, cujas características se expressam nas novas demandas organizacionais e tecnológicas, dando novo significado ao arranjo e dinâmica produtiva e, portanto, transferindo à sociedade e também à escola novas determinações e exigências.
Contudo, para além das demandas do capital, mas pelo próprio efeito dele, surge no contexto da educação temas sociais caros para as propostas mais progressistas em educação como cidadania, equidade, sustentabilidade, inclusão social  e democracia, cujos sentidos passam  a ser redimensionados pela lógica da competitividade. Ou seja, ao passo em que as relações  a partir das novas configurações do capital  se tornam mais competitivas e por consequência mais agravantes serão  os problemas sociais, econômicos e ambientais  cabe à escola, nesta perspectiva,   se reorganizar para reparar tais males.
Tem-se aí que a escola passou a ser responsabilizada em dar respostas à sociedade: se o desenvolvimento econômico impulsiona a produção e com isso a poluição ambiental, a escola poderia então transversalizar seu conteúdo com o tema meio ambiente ou mesmo realizar projetos com o fim de preservação ambiental; se a sociedade é excludente, a escola poderia trabalhar com valores como ética, cidadania, solidariedade humana , respeito e pluralidade cultural; se a competitividade econômica  exclui milhares de pessoas do processo produtivo e da vida social, a escola poderia desenvolver competências e habilidades genéricas que pudessem em tese capacitar o indivíduo para o mercado ou para a vida; se o desenvolvimento tecnológico trouxe  consigo a era da  informação ou do conhecimento, o papel da escola prescindiria tanto do conteúdo a ser ensinado como do próprio mediador desse processo.
Sem dúvida, com estas atribuições a escola serviria de cortina de fumaça para camuflar as reais condições estruturais sob as quais a sociedade e cada sujeito em si está condicionado. Portanto, agrava-se o fato de pensar que, pedagogicamente, a pedagogia de projetos é tomada como possibilidade de ensino, encobrindo a sistemática pontual que encerra em si mesma.
Cardoso (2007) situa a Pedagogia de Projetos no contexto do movimento da Escola Nova no Brasil oriundo das  bases norte americanas postuladas em Decroly e Kilpatrik, bem como da reforma espanhola, mais recentemente, com a influência  de Edgar Morin, César Coll e Fernando Hernandez. Ainda que contraditório, este movimento no  Brasil  está pontuado num processo de democratização da escola pública,  suscitado a partir das discussões do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Atualmente, a proposta se inscreve no contexto da reforma espanhola a partir de 1980 que procura desenvolver a idéia de um trabalho globalizador em detrimento ao currículo disciplinar. 
 A pedagogia de projetos acaba inscrita na idéia de que a partir de temas ou “situações problemas” (inter, multi ou polidisciplinar) os alunos são  levados a um processo de construção do conhecimento que acaba psicologizando a relação ensino e aprendizagem, ou seja a ênfase é colocada sobre “a estrutura cogniscitiva, no problema eixo que vincula as diferentes informações, as quais confluem num tema para facilitar seu estudo e compreensão por parte dos alunos” (HERNANDEZ (1998, p. 62).
Segundo Duarte (2001), a proposta de trabalhar em projetos secundariza o  próprio ato de ensinar à medida em que relativiza os conhecimentos, priviliegiando a construção individual dos mesmos.  Projetos acabam tendo começo, meio e fim. Neste sentido, os temas escolhidos acabam esgotando-se em si mesmos. Tem por conseguinte uma dimensão utilitária, pragmática e pontual pautada na resolução de problemas.  No entanto, no contexto da  sociedade dual e classista a qual vivemos, aprendemos e ensinamos, as questões sociais, ambientais e econômicas que se expressam na violência, na drogadição, na sexualidade, entre outras, não acabam assim  que acaba o projeto na escola e nem tampouco são resolvidas no âmbito curricular.  Segundo Cardoso (2007), portanto, a opção pelos projetos é absolutamente fragmentadora das relações pedagógicas, secundarizando o conteúdo elaborado, o papel do professor, bem como  afirmando o espontaneísmo das práticas escolares.
Assim, na esteira das reformas econômicas, passaram as reformas curriculares, fundamentadas na necessidade de se romper com a fragmentação dos conteúdos, no próprio currículo disciplinar,  na perspectiva dita “conteudista” do currículo e na lógica  do desenvolvimento  competências e habilidades cognitivas no lugar de ensinar conteúdos.

O modelo de organização curricular proposto pelos PCN, com base na pedagogia do             aprender a aprender, descentrou os conteúdos historicamente constituídos nas             disciplinas             escolares, por meio dos quais a escola trabalha com o conhecimento para dar destaque a             outros conteúdos, chamados por Sacristan (2000) de “nebulosos e pouco claros”.
A crítica à política de descentração dos conteúdos disciplinares sofre             constrangimentos             em conseqüência dos embates ocorridos entre as diferentes tendências pedagógicas no        século XX. Tais embates trouxeram para “[...] o discurso pedagógico moderno um certo             complexo de culpa ao tratar o tema dos conteúdos” (idem, p. 120). A discussão sobre             conteúdos curriculares passou a ser vista, por alguns, como uma defesa da escola como             agência reprodutora da cultura dominante. Contudo, sem conteúdo não há ensino,             qualquer projeto educativo acaba se concretizando na aspiração de conseguir alguns             efeitos nos sujeitos que se educam. Referindo-se estas afirmações ao tratamento científico             do ensino, pode-se dizer que sem formalizar os problemas relativos aos conteúdos não             existe discurso rigoroso nem científico sobre o ensino, porque estaríamos falando de uma             atividade vazia ou com significado à margem do para que serve (idem, p. 120) (SEED,         DEB, no prelo).

 No Paraná isto se tornou evidente a partir das políticas educacionais promovidas com os recursos do PROEM (Programa de Expansão Melhoria e  Inovação do Ensino Médio no Paraná) que vislumbrou, não somente a racionalização dos custos (enxugando as grades curriculares em nome da autonomia da aprendizagem e do aprender a aprender - como no caso dos PEC e  Pis, mais adiante explicados), como dos próprios  princípios pedagógicos, esvaziando a dinâmica social dos saberes e conteúdos necessários para compreensão crítica do mundo em nome do desenvolvimento das competências e habilidades.
O “aprender a aprender” foi defendido como a habilidade maior – de recuo da teoria que a escola deveria se  propor a desenvolver face às aceleradas mudanças ocorridas na sociedade.
Apoiada pelas políticas do contexto, não somente o conteúdo acabou sendo secundarizado, como o próprio conhecimento passou a ser relativizado. Isto se manifestou na  retração teórica afirmada pelo ecletismo de concepções, na descrença de toda e qualquer teoria e no  utilitarismo pós-moderno. A escola ou a sociedade de modo geral, passou a  experimentar  a compreensão dos elementos –chave da pós-modernidade.

            Neste sentido, segundo Fank (2007), a reorientação curricular  em especial, naquele contexto, (1998 – 2002) do Ensino de Segundo Grau e a capacitação dos professores trouxeram  para as escolas  propostas  que previam uma nova compreensão de currículo voltado para os “novos paradigmas” de educar para os “novos tempos”, a saber:
§          O saber fazer e o aprender a aprender, a despeito de “o que”  aprender  .
§          A interdisciplinaridade e a contextualização, como “recursos didático-pedagógico para o processo de construção de competências”.
§          A transposição didática como metodologia adequada à transformação do conhecimento (científico, técnico e artístico) em conhecimento escolar, ou até mesmo, em temáticas passíveis de serem re-significadas em forma de saber escolar.
§          A mudança de postura do docente – daquele que ensina e media o conhecimento para aquele que facilita o processo de aprender a aprender.
§         A construção individual do conhecimento a partir da pesquisa e da pedagogia de projetos ou Projetos Interdisciplinares (PIs).
Estas são algumas reflexões que  ilustram a forma como a pedagogia de projetos entrou nas escolas, bem como a forma como a própria escola absorveu algumas demandas do capitalismo, conforme análise feita,  a partir de projetos interdisciplinares e de temas transversais (pluralidade cultural, ética, cidadania, meio ambiente, sexualidade).
O reflexo deste movimento na escola acaba se expressando, segundo Cardoso (2007) na secundarização de sua especificidade. Isto pode se revelar numa  possível falta de fundamentos para se compreender que todos estes problemas devem ser analisados em sua totalidade, em sua concretude (elementos percebidos através do diagnóstico dos planos de ação das escolas de 2008). Nesta falta de referenciais quando se pensa em ações o que se apresenta é um conjunto de propostas que se configuram em temas ou projetos interdisciplinares, pontuais de caráter algumas vezes utilitarista, pragmático, fenomênico e, portanto, a-histórico.
Assim, na ânsia em poder enfrentar estes problemas que não são genuínos da escola, mas que incidem sobre ela,  a escola abarca para si mais demandas que, possivelmente, secundarizarão seu papel precípuo: o compromisso com a emancipação humana através da apropriação dos conhecimentos produzidos historicamente.

A forma de trabalho com projetos pontuais (como algo isolado do contexto curricular), projetos diversos para atender diversos interesses no lugar de promover uma visão de totalidade, tem como conseqüência uma espécie de redução de informações, cuja perspectiva nem de longe promove o desvelamento do que de fato está por trás destes problemas. (CARDOSO, 2007, p.77).

Isso implica em dizer que a forma de organização  social pautada na acumulação dos bens, na propriedade privada, na obtenção do lucro e, conseqüentemente, na reprodução das classes sociais, condiciona e tem condicionado o sentido da escola. Contudo, permite,ao mesmo tempo, à escola o movimento contraditório de formar sujeitos para além dessas determinações, o que equivale a dizer, formar sujeitos para além do conservadorismo e reprodução. Neste sentido, a escola que, historicamente, é o palco e alvo de disputa de interesses distintos, os quais, por sua vez, expressam a organização dual da nossa sociedade, própria da forma de organização econômica sob e no capitalismo tem a função precípua de tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação no mundo, para intervir nela transformando-a (SAVIANI, 1986).
Ocorre que a escola está e, ao mesmo tempo não está em crise, ela revela e esconde as relações de dominação, ela reproduz a ideologia do capital  bem como oferece condições de emancipação humana. Ao passo em que nela a disputa de interesses se manifesta, de forma mais ou menos contraditória, ela também manifesta e reproduz as relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Portanto, a escola é o fruto destas múltiplas determinações.  
Por tudo isso é que afirmamos que qualquer projeto de educação passa  necessariamente a representar um projeto social,  movido por uma necessária intencionalidade. Portanto, compreendemos que a escola não é neutra. Ainda que não se pretenda  nela assumir uma ou outra postura política (entendendo o conceito de política não como  representações partidárias, mas como  uma ação movida por uma reflexão que pressupõe essa intencionalidade ) essa pseudo neutralidade traz consigo uma opção: conservar e reproduzir. Diante dessa não neutralidade só resta assumir um posicionamento que  é coletivo e parte das próprias relações pedagógicas inscritas no interior da escola, “que parta da prática social, para que ao compreendê-la para além de sua superficial aparência, possa se lutar pela sua transformação (CARDOSO, 2007, p.122).
O que se percebe é que, na esteira destas propostas ideológicas para a escola, tem-se a secundarização de sua especificidade e a  incompreensão sobre o próprio papel do conteúdo. É somente a partir da compreensão do conteúdo em sua totalidade e a partir  do necessário movimento dialético, que as questões apontadas como  “demandas” podem e devem ser discutidas. Para tal,  a primeira reflexão ou suporte necessário, seria pensar em que medida estas demandas  podem ou não passar pelo currículo e, neste sentido, convergem com a intencionalidade da escola, permitindo ou não a formação crítica dos sujeitos.
A idéia centraliza-se em uma pedagogia essencialmente voltada para o saber sistematizado, cujas elaborações se dão por determinações concretas, portanto, arraigadas de realidade. Deste modo, transversalizar temas da contemporaneidade e tratá-los em sua superficialidade em projetos também superficiais, significa reconhecer o conteúdo escolar de forma a-histórica e descontextualizada.
Ademais “se o conhecimento não supera o senso comum não é conhecimento; são suposições desagregadas que seduzem os trabalhadores [...] por se aproximarem de sua realidade mas o mantém subordinados aos desígnios do espontaneísmo. Esta educação é conservadora” (RAMOS, 2003 p. 11). 
Não há aqui, portanto, uma supervalorização da teoria, mas o entendimento que a consciência dos sujeitos se dá pela práxis, não como junção estanque da teoria e prática, mas como condição unitária de compreensão da realidade, em uma perspectiva de totalidade.
Assim, conforme Kosik (1976, p. 35)

Existe uma diferença fundamental entre a opinião dos que consideram a realidade como totalidade concreta, isto é,  como um todo estruturado em curso de desenvolvimento e de autocriação, e a posição dos que afirmam que o conhecimento humano pode ou não atingir a “totalidade” dos aspectos e dos fatos, isto é, das propriedades das coisas, das relações e dos processos da realidade. Como o conhecimento humano não pode jamais, por princípio, abranger todos os fatos – pois sempre é possível acrescentar fatos e aspectos ulteriores – a tese da concreticidade ou da totalidade é considerada uma mística. Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente e historicamente compreendido. (grifo nosso)


Deste modo, tratar os conteúdos curriculares em sua totalidade, significa compreendê-los como síntese de múltiplos fatos e determinações, como um todo estruturado, marcado pela disciplinaridade didática. Tratar os conteúdos em sua dimensão práxica é compreender que a atividade educativa é uma ação verdadeiramente humana e que requer consciência de uma finalidade em face a realidade, por meio dos conteúdos, impossibilitando o tratamento evasivo e fenomênico destes.
Assim sendo, o currículo reafirma sua intencionalidade no processo de seleção dos conteúdos. É por meio desta que se revela a concepção de currículo adotada pela escola e, conseqüentemente, pelo professor. Na opção por um currículo que trabalha com a totalidade de conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade citada acima, automaticamente há renúncia ao enfoque individualista e, portanto, fragmentado e superficial de tratamento ao conhecimento. Essa opção é feita tanto na seleção dos conteúdos, quanto no recorte e enfoque dado aos mesmos na prática escolar.

Entende-se que é preciso ultrapassar a idéia e a prática da divisão do objeto didático pelas   quais os conteúdos disciplinares são decididos e selecionados fora da escola, por outros             agentes sociais. Deve-se combater a idéia de que aos envolvidos no ambiente escolar,             sobretudo aos professores, caberia apenas refletir e decidir sobre as técnicas de ensino.
[...] A reflexão sobre a justificativa dos conteúdos é para os professores um motivo             exemplar para entender o papel que a escolaridade em geral cumpre num determinado             momento e, mais especificamente, a função do nível ou especialidade escolar na qual             trabalham. O que se ensina, sugere-se ou se obriga a aprender expressa valores e             funções que a escola difunde num contexto social e histórico concreto (SACRISTAN, 2000,   p. 150) (SEED, DEB, no prelo).

            A busca por uma educação de qualidade, na garantia de apropriação dos conhecimentos, leva-nos a refletir sobre o que entendemos por conhecimento escolar e de que forma a sistematização dos saberes é feita até a sala de aula. Segundo Moreira (2007, p. 22) “concebemos o conhecimento escolar como uma construção específica da esfera educativa, não como uma mera simplificação de conhecimentos produzidos fora da escola. Consideramos, ainda, que o conhecimento escolar tem características próprias que o distinguem de outras formas de conhecimento.” Vê-se aqui a preocupação com o resgate da função social da escola na apropriação dos conhecimentos sistematizados, não desconsiderando as demais instituições e espaços sociais como produtores de saberes, mas estes, não obrigatoriamente, serão reelaborados como saber escolar. Nesta perspectiva, a formação pretendida pela escola é segundo Ramos (2003) conquistada a medida que os estudantes identificam nela a relação orgânica com o dinamismo social que vivenciam, no sentido não de conservar sua condição de classe dominada, mas de transformá-la.
            Em síntese, a concepção de conhecimento escolar, bem como o reconhecimento de que a seleção dos conhecimentos situados em seu tempo e espaço histórico (não de forma neutra), terão certamente reflexo no processo de construção do projeto político-pedagógico – e, proposta pedagógica curricular - da escola. E como forma de reafirmar a busca por uma educação de qualidade, entende-se que uma “educação de qualidade requer a seleção de conhecimentos relevantes, que incentivem mudanças individuais e sociais, assim como formas de organização e de distribuição dos conhecimentos escolares que possibilitem sua apreensão e sua crítica (MOREIRA, 2007, p.21).
         Nesta perspectiva de currículo, conhecimento e conteúdo, é preciso situar que  alguns dos desafios educacionais contemporâneos postos à escola hoje, enquanto  marcos legais (exemplo: Lei 10639/03trata sobre obrigatoriedade do ensino da História e cultura afro brasileira e africana – Lei 11645/08, trata sobre obrigatoriedade do ensino da historia e cultura afro brasileira, africana  e indígena. ECA, Estatuto do Idoso, entre outros)  tem uma historicidade ligada ao papel e à cobrança da sociedade civil organizada, em especial  dos movimento sociais.  Esta pressão histórica da sociedade na condução destas discussões  também resulta em acordos internacionais firmados pelos países signatários, a exemplo do acordo  Conferência Mundial de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e discriminações correlatas. (2001). Esta historicidade ajuda compreender por que  algumas demandas ganham força de lei e outras não.
             Segundo Frigotto (1993), a produção do conhecimento e sua socialização para determinados grupos ou classes não é alheio ao conjunto de práticas e relações que produzem num determinado tempo ou espaço. Isto significa dizer que ao se abordar o conteúdo da disciplina – recorte histórico, político e cultural do conhecimento  (que por sua vez já trouxe consigo uma intencionalidade) é preciso analisá-lo em suas múltiplas determinações. Mesmo delimitado, o conhecimento não perde o tecido da totalidade. É na categoria totalidade – condição de compreensão do conhecimento nas suas determinações  que se as questões sociais, ambientais, econômicas, políticas e culturais  podem e devem ser tratadas. Nesta perspectiva,  os “desafios educacionais” no currículo deve pressupor ser parte desta totalidade. Portanto eles não podem se impor à disciplina numa relação artificial e arbitrária,  devem  ser “chamados” pelo conteúdo da disciplina em seu contexto e não o contrário transversalizando-o ou secundarizando-o.
            É necessário admitir, conforme Frigotto (idem),   que o conhecimento em sua totalidade não se efetiva se não formos capazes de buscar ir para além da aparência, da  fragmentação, e do plano fenomênico – heranças do empiricismo e do positivismo. O conhecimento é produto da realidade social, objetiva  e concreta - historicamente condicionada. Portanto, os chamados “Desafios educacionais contemporâneos” devem passar pelo currículo somente como condição de compreensão do conteúdo nesta totalidade, fazendo parte da intencionalidade do recorte do conhecimento na disciplina. isto significa compreendê-los como parte da realidade concreta e explicitá-la nas múltiplas determinações  que produzem e explicam os fatos sociais.
            Segundo KOSIK (1976, p. 15)

O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. o fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo o esconde. A essência se manifesta no fenômeno mas só de modo inadequado , parcial ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O  fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente , é mediata ao fenômeno e portanto se manifesta em algo diferente daquilo que é.  [...] A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.

            A partir da  análise de Kosik se pretende dizer que  compreender o conhecimento em sua totalidade implica em ir para além  da aparência e da pseudoconcreticidade. Significa fazer um detour sobre os fatos históricos, sociais, políticos, culturais  e econômicos,  não de forma imediata mas dialética. Os desafios educacionais contemporâneos, além de  pressupor um outro olhar (não na perspectiva ingênua e linear que encobre os fatos históricos em  favor da perspectiva do dominador como tradicionalmente foram tratados os conteúdos,  mas do conhecimento concreto da realidade histórica)  sobre as questões sociais, culturais, ambientais e históricas, devem ser trabalhados na disciplina os quais se contextualizam, como condição deste detour, como condição de compreensão do conhecimento em suas múltiplas manifestações. Isto não significa, portanto, abarcar toda produção histórica, social ou cultural sobre  o conhecimento  do conteúdo disciplinar, nem tampouco idealizar soluções mágicas para resolvê-los no âmbito da escola, mas em primeiro, conhecer a especificidadade  de cada uma das demandas desses “Desafios” para, segundo,  delimitar esse conhecimento  em suas dimensões concretas, compreendendo os fatores que os  condicionam  – interpretando os  seus “porquês”  em sua totalidade.      
             Numa perspectiva histórica,  para o entendimento destas discussões em sua totalidade,  é preciso, em primeiro lugar, que o professor busque outros  referenciais que possibilitem uma outra representação sobre os fatos e sobre o passado.  É importante perceber, segundo Savoia  (2008) que na impossibilidade de resgatar o passado tal como foi, construímos sempre em relação a ele, uma representação. As representações geram praticas e estas, por sua vez, perpetuam ou criam novas representações. Assim, se construímos representações do passado, de nossa história eivadas de estereótipos em relação ao povo negro, indígena, cigano, entre outros, estamos contribuindo para fomentar práticas de preconceito, discriminação e racismo em nossa sociedade.
            Estes e outros olhares sobre os fatos e sobre a história nos indicam que as questões sociais, econômicas, raciais, ambientais, embora não sejam  genuínas da escola,  nela se apresentam como desafios que pressupõe, sobretudo, uma outra compreensão  para além da visão idealista ou estereotipada sobre os fatos e sobre a história.
             Isso sugere que a percepção sobre o currículo se amplie para além das propostas curriculares. Equivale a dizer que,  embora seja insuficiente tratar tais desafios a partir da organização do conteúdo tal como vem sendo posto, não se pode negligenciar na escola  o enfrentamento aos  mesmos. Não se pode negar que  tais situações estão preementes  o que a conduz a um claro paradoxo:  não secundarizar sua função  social na socialização do conteúdo historicamente produzido pelo conjunto da humanidade e  não negar situações postas pelo  cotidiano, as quais a escola  tem que fazer enfrentamentos. É nesta contradição que, além de retomar a análise já realizada sobre o conteúdo em sua totalidade, se situa o papel do coletivo escolar diante da discussão do seu projeto de escola pública.
             De certa forma, é preciso  que, num primeiro momento, o coletivo escolar busque os   referenciais teóricos necessários para fundamentar esta discussão ( como  por exemplo os cadernos temáticos, a biblioteca do professor, TV Paulo Freire) para que, num segundo momento, a escola possa vislumbrar no seu Projeto Político Pedagógico  os suportes institucionais ou não, necessários para instrumentalizá-la sobre  como agir diante de situações concretas que se põe no cotidiano (ex. a questão da violência, da sexualidade, do uso de drogas).  A busca destes suportes, portanto,não prescinde de uma fundamentação clara  sobre a natureza dos “problemas “ que se põe no cotidiano, até mesmo para que a escola não caia no afã de voluntarismos de práticas pontuais, pragmáticas, psicologizantes  e espontaneistas.      
            Embora do ponto de vista das contradições próprias do capitalismo contemporâneo as medidas que a escola busque talvez  sejam paleativas, a discussão sobre elas deve ocorrer a fim de possibilitá-la  procurar os suportes já existentes  e aqueles que  ainda precisam ser construídos inclusive do ponto de vista das políticas públicas.
            Há de se ter clareza, portanto,  de que a escola  não dá conta de tudo, mas de forma consciente e fundamentada pode e deve fazer o exercício de discutir sobre estes desafios, entendendo-os na mesma perspectiva do conteúdo escolar: na perspectiva da historicidade, da concreticidade e da totalidade, indo para além de representações ingênuas,  idealistas e estereotipadas da realidade.
            Em síntese, tanto os conhecimentos universais como os desafios do cotidiano podem e devem ser discutidos  como expressões históricas, políticas e econômicas da realidade. Tornam-se  parte  do conteúdo e, portanto,  da proposta pedagógica curricular quando e se inerentes à compreensão dos mesmos na totalidade e são  desafios  do cotidiano que conduzem o coletivo escolar a buscar os fundamentos conceituais  sobre os mesmos, entendo-os nas dimensões históricas, sociais, políticas  e econômicas, suscitando a busca por suportes concretos dada a compreensão dos mesmos em sua concretude.
            Estas são as necessárias discussões, a serem feitas na escola, para que o currículo possa expressar o projeto de educação e de sociedade que se almeja e neste sentido a intencionalidade do trabalho com o conhecimento na disciplina. Esta análise também é necessária para que se retome na escola a análise da Proposta Pedagógica Curricular -  expressão desta intenção no Projeto da escola pública em sua função social.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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[1]    Texto elaborado e organizado por Ana Carolina Soares Duarte, Elisane Fank e Paulla Helena   Silva de Carvalho,  da  Coordenação de Gestão Escolar CGE/SEED para a Semana Pedagógica Descentralizada nas escolas/julho de 2008.
[2]     A reestruturação produtiva foi o movimento de reorganização do modelo de produção, dado especialmente em meados da década de 80, afirmando-se na década de 90, no processo de internacionalização do capital e readequação dos modelos de base rígida nos moldes do Toyotismo.
[3]     O aprender a aprender reside na compreensão que as aprendizagens que o “individuo realiza sozinho são mais desejáveis do que aquelas que ele realiza por meio da transmissão de conhecimentos por outras pessoas [...] Trata-se da idéia de que é mais importante o aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração, descoberta, construção de conhecimentos do que aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras pessoas” (Duarte, 2001, p.35).

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